As tochas se acendem, inflamam-se os chifres de ossos e reverberam as peles de animais: todos, homens, mulheres, crianças e anciões reúnem-se em torno da flama que parece arder a noite inteira ao rufar de tambores e ao bradar de pulmões, pulsando em quase-êxtase a alegria de estar acolhido pela família. Mas, ao fundo, junto ao teatro de sombras da parede, pode-se jurar que existe mais alguém além da cena: um estalo, um grunhido, um sentimento estrangeiro manifestado pelas costelas magras, os rostos cadavéricos e os olhos brilhosos, sedentos por fogo. Uma legião sem rosto e sem nome acampa à margem da civilização.
O parágrafo acima pode estar tratando de qualquer tribo, qualquer tempo e qualquer lugar do planeta em mais de 300 mil anos de história da espécie humana; mas, ainda assim, algo nos parece estranhamente familiar. Alguma coisa sem-nome, quase enigmática, nos atrai e se aproxima da sociedade pós-moderna de hoje em dia, quase dois mil anos depois da morte de Cristo. Não é curioso? Para um nipo-americano, não seria. Afinal, desde 1989, com a derrocada final de um império e a reorganização de seus espólios por meio de mentes inteligentíssimas — as mesmas que não preveriam a bolha imobiliária norte-americana, de Wall Street — a história humana teve seu desfecho final.
Inspirado pela concepção hegeliana de fim da história, Francis Fukuyama anunciou que o “Estado homogêneo universal”, representado pelas altivas Águias de Washington, não só garantiria os direitos e liberdades de seus governados, sanando todas as contradições inerentes ao jogo político democrático, como ainda protegeria e apoiaria seus aliados e parceiros, mediante vassalagem — conhecido também como Consenso de Washington. Neste mundo perfeito, haveria o fim dos embates políticos ideológicos e os frutos do progresso e da bonança humana seriam repartidos igualmente entre os países, seguindo as leis e os protocolos dos mercados, de acordo com as especificidades de cada região. O conto de fadas caiu no colo do anjo da História ao abrir-se a cortina de ferro, e, logo, se entendeu: foi a união global em prol de valores civilizatórios e, sobretudo, econômicos, que deu cara à Pax Romana contemporânea.
Entre os mitos que correm à boca solta pela tribos, poucos tratam de aplacar a violência e dar cabo das disputas locais da aldeia; em verdade, como Octavio Ianni muito bem sublinhou, uma “aldeia global” é antes de tudo um acordo entre diferentes comunidades por uma unidade: “[a aldeia global é um] sistema comunicacional que molda uma cultura de massa, um mercado de bens culturais, universos de signos e símbolos, um conjunto de: linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros se situam no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem”. Em outras palavras, a condição primeira para ser aceito na tribo é estabelecer uma hierarquia entre ideias e valores locais — regionalistas, decadentes, atrasados — e aqueles que emanam desse polo pujante, dito central, que, por vezes, são cópias da cultura de grupos dominantes.
Ora, a própria ideia de agrupamento global não teria uma essência violenta? Aquelas populações, grupos, países, nações que aceitariam — ou não — fazer parte da alcateia teriam outra escolha além de se juntar aos lobos? Ou aqueles povos que disseram “não” aos ditames da selva e às leis dos xamãs conseguiram se manter de pé frente ao cerco de rapinas de Washington?
Para Marshall McLuhan, figura carimbada em faculdades de comunicação, a própria ideia de aproximação de culturas e povos historicamente antípodas é providencial para germinar a discórdia: “o conceito de cidadezinha não impõe a existência de relações cordiais. Nas aldeias as pessoas criticam, espiam, odeiam […]; é como uma família: não há ambiente mais selvagem do que o de uma família”. Rodolfo Londero e Michelle do Nascimento, em artigo sobre Cyperpunk contemporâneo, vão além e argumentam que a derrocada fukuyamista é inerente ao próprio projeto de “aldeia global”: “São as minorias em busca dos direitos ou, simplesmente, da sobrevivência, que apagam a falsa imagem idílica da aldeia global para deixarem transparecer o que ela realmente é: um ambiente selvagem”.
Mas, vamos voltando ao nosso carneiro, caro leitor: o que o silêncio dos arrependidos tem a ver com nossa violenta experiência de tribo? Quando assistimos os esfaimados nos faróis, os pedintes, muitas vezes ainda guris, na frente do mercado, e suas mães, prenhas de uma prole estrangeira sem futuro, não vemos uma aldeia impiedosa? E quanto aos tantos e tantos carroceiros, ambulantes, flanelinhas e engraxates que deixam o manto da invisibilidade de lado quando viramos a cara e mal disfarçamos a vergonha de nossa tribo: suas dores, suas paixões e suas histórias não são dignas de serem contadas em sessões de conforto ao redor da fogueira? Ou seus corpos (e suas sinas) só podem ser significadas a partir de suas violentas tentativas de sobreviver ao inferno de suas vidas, encaradas por nós como atos odiosos, a título de indignação pública e escárnio tribal? E eu e você, caro membro do conselho da tribo, já refletimos por que ficamos mais chocados com o furto de leite e margarinas das gôndolas dos supermercados do que com os excessos e as omissões de nossos líderes?
Em primeiro lugar, se nós, habitantes centrais da tribo, sentimos raiva, ou no limite, cólera de conselheiros, chefes ou até o mesmo do xamã, é mais pela maneira como aquelas figuras lidam com suas obrigações do que de fato pelas pessoas que são e os cargos que representam — e o pleito das últimas eleições municipais não me desmente. Assim, quando líderes se fazem errantes e a calamidade se instaura na aldeia ceivando milhões de vidas, podemos cobri-los de vários nomes: incompetentes, irresponsáveis, pulhas, apátridas e, quiçá, assassinos; no entanto, a proximidade de nossos laços históricos, hierárquicos e, em muitos casos, sanguíneos impede que cultivemos qualquer opinião definitiva ou lancemos mão de qualquer conclusão certeira. Podemos — e devemos, claro — tecer juízos de valor acerca da moralidade individual de nossos governantes, no entanto, colocar em questão a legitimidade da tenda de conselheiros, do casebre do xamã e da choupana do líder é levantar a voz contra nossos avós.
Se a ideia da aldeia global se sustenta, concatenando todas as qualidades dos diferentes povoamentos da terra e estimulando como esmero nossas mentes a pensar, rigidamente, de uma única forma, em buscar sempre os mesmos sonhos, é natural que não haja espaço para todos. Sejam ricos, pobres, classe-média ou paupérrimos, o senso comum que nos congrega, a despeito dos preceitos católicos mais simples, é sempre o de nos impormos a comparações injustas para entender se estamos dando o rumo certo a nossas vidas. É nesse momento que Jean-Jacques Rousseau fala do ódio como um dispositivo necessário para o homem sobreviver em sociedade, uma vez que projetando-o em figuras ou conceitos, este pode descarregar seus medos, vontades e frustações, muitas vezes abstratas, em um único objeto; logo, se “o homem é bom [por natureza] e a sociedade o corrompe”, o ódio se torna uma droga para viver em sociedade.
Mas, cara-pálida, isso não responde ao seu dilema: afinal, posso muito bem concretizar minhas angústias na figura de algo próximo a mim, inclusive, não faltam exemplos de famílias, namorados, ex-funcionários e amigos que não dão mais as caras após algum desentendimento, a fim de evitar frustações. Concordo em parte, meu caro. Embora seja, sim, possível que esse sentimento perdure por anos, é improvável que reduziremos essas pessoas apenas às manifestações puras de nosso ódio. Preferir o ranço depois que algo tenha abalado nossas relações é algo completamente plausível, se bem que no fundo de nossas lembranças, ainda guardemos sentimentos de ternura sobre aquela pessoa.
Diferente, por outro lado, é quando confessarmos ódio como fé. É o que conta Jean-Paul Sartre: quando a raiva não se sustenta mais como um alívio para nossos problemas terrenos, nutrimos o ódio pelo outro para nos salvarmos. De quem, você poderia se perguntar? Dos malvados, é claro. Na dicotomia sartriana, o objeto da minha repulsa deve ser radicalmente contra mim, tal qual um vilão caricatural dos quadrinhos. É por meu ódio que ganharei o reconhecimento de meus pares e firmarei, com sucesso, meu lugar na tribo com meus semelhantes. Essa matemática não é mera magia da floresta: enquanto a natureza for natureza e a humanidade for composta de homens, exércitos de odiosos e odiados serão necessários para enfatizar quem somos e quem não somos, como lembra Sartre: odiar o outro não é apenas uma forma de ascensão pessoal, mas, também, de fantasmagorizar o outro.
Agora sejamos francos — de verdade —, não vivemos mais em uma tribo. Nossa comunidade internacional, malgrado nossos defeitos originários, tem estado cada vez mais entrelaçada, resolvendo questões críticas e seculares com dedicação e temperança, transformando a vida de milhões. Sem falar nos avanços expressivos no campo científico e tecnológico, que, além de prolongar vidas, também encurtam as distâncias sociais e educacionais, expandindo horizontes nos últimos anos. Portanto, hoje entendendo nossa aldeia deslocada de seus instintos ímpios, e seus participantes não mais como unidades deslocadas, mas sim como representantes globais amalgamados dentro de um estado supranacional, haveria espaço para a cultura do ódio?
Nessa discussão, só posso me pôr ao lado do protagonista de O estrangeiro, de Albert Camus “Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio”