Nascido em 1976, na periferia do distrito do Campo Limpo, em São Paulo, Eduardo Kobra já foi vândalo. Mas esses traços ficaram no passado. De pichador a muralista profissional, ele se tornou um artista reconhecido e premiado, que faz da sua obra de arte um instrumento para a valorização da memória e busca pela paz. Autodidata, Kobra deixa sua marca nos muros de algumas das grandes cidades pelo mundo. É o que se vê em “Etnias – Todos Somos Um”, no Rio de Janeiro; “Oscar Niemeyer”, em São Paulo e “Let me be Myself”, mural sobre Anne Frank, em Amsterdã. Em todos eles, o paulistano busca democratizar a arte e transformar a paisagem urbana através do olhar. Eduardo Kobra concedeu uma entrevista exclusiva à revista Arruaça, na qual expõe um pouco mais sobre as nuances de seu trabalho.
ARRUAÇA – Como foi a sua infância na periferia?
Eduardo Kobra – Sou de origem humilde – meu pai estudou pouco e minha mãe sempre foi dona de casa. Tive uma infância com muitas dificuldades, mas ao mesmo tempo, bastante feliz na periferia. Ser criança num ambiente carente talvez tenha sido até mais legal do que crescer num bairro nobre, onde ser livre é sinônimo de perigo. Eu vim da Zona Sul de São Paulo, e no meu bairro, Campo Limpo, tive muito mais liberdade para brincar. Lá eu empinei pipa, joguei futebol no campinho improvisado, andei de carrinho de rolimã entre os carros… Eu não vejo crianças brincando nas calçadas dos Jardins, por exemplo. Você vê? Por causa dessa independência quando criança, tive acesso à cultura de rua, do hip-hop e do break, na qual as questões da pichação e do grafite são uma forma de expressão, e também, de diversão.
ARRUAÇA – Você se tornou um dos maiores artistas de street art do mundo. Cultura e arte faziam parte do seu cotidiano na periferia?
Eduardo Kobra – Não. Como nenhuma das gerações da minha família teve muito apreço artístico – e eu só estudei até o terceiro colegial –, só entrei numa galeria de arte pela primeira vez aos 29 anos. Eu não fiz faculdade e nenhum curso durante toda a minha vida. Mas, por outro lado, eu sempre me interessei e me dediquei muito aos desenhos. Estudei por conta própria e busquei informação. As pessoas não acreditam quando eu falo, mas na periferia onde eu morava as crianças sabem que existe um “tal” de Claude Monet. Mas é claro que nada aprofundado. Hoje em dia, você precisa ter o mínimo de instrução. Como eu fazia parte da cultura do skate e do hip-hop, comecei a rabiscar intuitiva e naturalmente entre os meus amigos. Meus cadernos da escola eram inteirinhos desenhados, mas estudar matemática que era bom, nada. Era desafiador ver quem desenhava melhor. E eu era o “Cobra”, o garoto que tinha dom com os traços e dava “medo” nos colegas por isso. Daí virei Kobra com “k”, para ninguém me confundir. Dos cadernos eu fui para os muros, e então nunca mais parei.
ARRUAÇA – Antes de se tornar um muralista premiado, você foi grafiteiro e pichador. Já se envolveu com o submundo do crime?
Eduardo Kobra – Aos oito anos eu já tinha um caso de amor com meu primeiro caderno de desenho. Aos 12, comecei a pichar. E tinha muitos amigos envolvidos com o crime e que eram usuários de drogas. Mas eu era o falso malandro: na hora de cometer um delito, eu sempre desistia. Caminhei no limite da lei, já fui bem radical. Fiz parte de um movimento de rua que lidava com as coisas de uma forma muito agressiva. Tudo o que acontecia eu revidava com violência. Mas depois de algumas confusões, acabei transformando o olhar. Foi isso que me salvou. Meu negócio era pichar, então se eu tivesse que estourar um cadeado para subir num prédio, para colocar meu nome lá em cima, eu não pensava duas vezes. Eu adorava essa adrenalina. Colocar meu nome para todo mundo ver me dava um prazer incomparável.
ARRUAÇA – A tinta correu pelas suas veias. E virou uma inimiga em potencial?
Eduardo Kobra – Sim, uma inimiga quase mortal. Há uns 15 anos eu me afundei na minha depressão, estava com um desânimo descomunal, problemas digestivos e pulmonares, quase não dormia à noite pois estava insone… Tomava 12 comprimidos tarja-preta por dia. Meu psiquiatra descobriu, depois de muitos exames, que na verdade eu estava com uma grave intoxicação causada por excesso de chumbo no organismo. Esse metal é presente nas tintas que utilizo no meu trabalho. Fui pesquisar sobre o assunto e descobri que alguns pintores famosos tiveram esse tipo de intoxicação, como o próprio Van Gogh, por exemplo. Acho que foi por isso que ele cortou a orelha – ficou descontrolado diante dos sintomas. Cândido Portinari também sofreu desse mal. Vários transtornos físicos e psicológicos são causados pela inalação excessiva do gás das tintas, principalmente daquelas à base de óleo. Eu uso aquelas em spray, e nunca havia me equipado com máscaras ou luvas para me proteger. As tintas são realmente tóxicas e perigosas. Apesar do sofrimento, ainda me sinto privilegiado por tê-las correndo no meu próprio sangue.
ARRUAÇA – Kobra, qual é o sentido da sua arte?
Eduardo Kobra – A arte se comunica com o mundo através de uma mensagem que toca as pessoas. Munido das minhas tintas, eu acabo me comunicando com culturas de vários países e de classes sociais distintas, sem falar nenhuma palavra. O essencial não é só a pintura, ela só é uma técnica aprendida. A mensagem presente nos meus murais faz parte de mim, é algo proveniente do meu universo como ser humano. Fico feliz com isso, porque meu trabalho atinge pessoas de classes sociais muito diferentes – e isso não é tão comum. Tenho contato com pessoas que nunca foram a uma exposição, mas admiram meu trabalho que é puramente street art. Eu passei por toda essa transição da arte de rua: do momento em que ela era objeto de preconceito, até os dias atuais, quando percebo olhos de admiração. Se você for a fundo nessa questão, vai notar que não há diferença na arte exposta em galerias ou museus – neles é possível ver obras tão excepcionais quanto no caos da cidade. Não existe mais esse “muro” que divide as galerias das ruas.
ARRUAÇA – Você é hoje um reconhecido expoente da neovanguarda paulistana, que quebra recordes de si mesmo. Como foi entrar para o Guinness Book?
Eduardo Kobra – É um desafio instigante fazer murais imensos. Estar no Guinness traz ainda mais visibilidade às obras. Eu sofri muito preconceito no início, mas hoje pessoas me param na rua para me parabenizar. O mural “Etnias” é o maior do mundo, feito especialmente para os Jogos Olímpicos do Rio. São 15 metros de altura e 170 de comprimento, 180 baldes de tinta acrílica, 2.800 latas de spray, sete elevadores hidráulicos…Toda essa estrutura para falar dos nossos índios, que são parte da nossa cultura e infelizmente estão esquecidos, quase invisíveis aos nossos olhos. Fiz questão de fazer uma arte bem grande, para todo mundo ver.
ARRUAÇA – Como é o processo de produção para fazer um mural gigante como o “Etnias”?
Eduardo Kobra – Eu não tenho uma equipe numerosa como muita gente imagina. Trabalho ao lado de outros dois artistas que me acompanham – o Agnaldo Brito e o Marcos Rafael. Somos apenas três, e formamos um trio em perfeita sinergia. A criação é toda minha. A partir dela, o processo de pintura é feito em uma arte em menor escala, para então ser reproduzido no prédio. Dificilmente eu mudo o projeto na hora de pintar, mas nem sempre fico satisfeito. Sou muito perfeccionista – às vezes fico com raiva de ter feito aquilo sabendo que poderia ter feito melhor.
ARRUAÇA – O que a arte de rua tem a nos dizer em pleno século 21?
Eduardo Kobra – Interessante frisar o século 21, porque a arte muralista está presente na vida do homem desde o período paleolítico. Nossos ancestrais já se expressavam com rabiscos nas paredes, retratando a vida selvagem, seus medos, sua devoção. Milhares de anos depois – e em meio ao caos urbano –, busco resgatar o patrimônio histórico que se perdeu. E já fiz isso em cidades de mais de 40 países pelo globo. Através do olhar, proponho reflexões distintas, seja sobre a memória urbana ou sobre a matança de animais e a destruição da natureza, como no painel “Greenpincel”. Também pintei figuras icônicas que se destacaram na temática da paz, como Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá, Dalai Lama, Martin Luther King, John Lennon. O olhar já me libertou uma vez. Agora é só ajustar o foco. A arte de rua contribui para a paz e derruba os muros do preconceito, sem contar que deixa a paisagem cinza dos centros urbanos um pouco mais democrática e colorida.