Graduado em jornalismo, letras e lingüística, o professor da Faculdade de Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, Thiago Mio Salla iniciou sua carreira nas redações dos jornais. No entanto, o interesse que cultivava desde a infância pelo escritor Graciliano Ramos o levou por uma trajetória de pesquisa que influenciaria não apenas seu modo de escrever, mas toda sua carreira. O encontro com o acervo do autor, guardado no Instituto de Estudos Brasileiro da Universidade de São Paulo (IEB-USP), revelou textos inéditos, entrevistas e materiais diversos sobre o escritor alagoano que resultaram em uma tese de doutorado, três livros publicados – Garranchos, Conversas – Graciliano Ramos e Cangaços – e uma exposição no Museu da Imagem e do Som, baseada em um de seus livros organizado em parceria com Ieda Lebensztayn.
Em entrevista à Arruaça, Thiago Mio Salla contou um pouco mais sobre o livro que inspirou a exposição (em cartaz no MIS de setembro a novembro desse ano), Conversas, e de sua pesquisa sobre Graciliano Ramos.
Arruaça: Por que Graciliano?
Thiago: É como se tivesse uma mescla tanto de interesse pessoal quanto profissional. Havia uma afinidade que já vinha desde o ensino médio, quando me fascinei por Vidas Secas que retratava uma realidade, aparentemente, muito distante da minha, mas na qual eu conseguia identificar similaridades. Durante minha primeira graduação em jornalismo, eu comecei a observar essas pontes entre literatura e jornalismo e fui estudar as crônicas do Graciliano, que é a parte menos privilegiada da produção dele. Eu comecei a freqüentar o IEB, onde foi depositado o acervo dele, e o gosto por bibliotecas, por acervos e por revirar esses materiais possibilitou que eu encontrasse um monte de textos que eram inéditos em livro. O casamento entre o gosto pessoal e a possibilidade de trabalhar com esses textos despertou também o interesse em ir atrás de outros escritos e entender como eles faziam parte daquela obra maio. O livro veio justamente dessa mescla.
Arruaça: Qual é o papel, hoje, do Graciliano na literatura brasileira?
Thiago: Há a questão de os livros dele fazerem parte do currículo escolar, principalmente quando se trata de Vidas Secas, que se propõe a tratar não apenas do fenômeno climático daquela região, mas também da secura da própria existência humana. Para além do caráter documental da literatura, há também a fatura artística, a forma por meio da qual ele consegue ressaltar uma espécie de revolta, uma problematização dos temas, mas, ao mesmo tempo, com uma concisão, um jeito de implantar e de domar o sentido, de dominar a frase, de optar por um tipo de texto mais visceral. Ele acabou se tornando um modelo literário, dos modos e temas que ele elege, e se tornou referência.
Arruaça: Qual a repercussão do Graciliano internacionalmente?
Thiago: As obras de Graciliano, pensando em termos mundiais, são fartamente traduzidas em vários lugares do mundo. Começou pela América do Sul, teve edições na Argentina, no Uruguai, nos EUA também e, como o Graciliano teve um vínculo muito forte com o Partido Comunista, houve traduções tchecas, russas e polonesas. As obras dele foram publicadas em 20, 30, 40 idiomas. Mas qual a penetração da literatura brasileira traduzida nesses países? Não há estudos que dimensionem isso, mas temos a percepção de que ela não é muito grande. Houve uma divulgação do Graciliano, mas não em uma escala que outros autores brasileiros têm, que é o caso do Jorge Amado e do Erico Veríssimo, os dois best-sellers do Brasil do século XX.
Arruaça: Qual foi a contribuição do Graciliano para os estudos literários do Brasil?
Thiago: O Graciliano teve um vínculo muito forte com o Partido Comunista e o romance dele, a partir de 1930, está interessado em conversar com o leitor. Não é propriamente uma simplificação da práxis narrativa, mas sim um desejo de comunicação, uma vontade de atrair e conseguir chegar até esse público. Então, houve uma retomada de modelos clássicos do século XIX como forma de retornar às estruturas narrativas que são mais consagradas, para, a partir daí, você trabalhá-las de modo novo, com informações novas e conseguir chegar a esse ponto que influenciou a prosa jornalística e literária.
Arruaça: O que seu livro traz de novo sobre a vida e a obra de Graciliano Ramos?
Thiago: Do ponto de vista pessoal, o Graciliano até chegou a ser rotulado como um autor casmurro, fechado, pouco comunicativo. E todo mundo dizia que seus depoimentos e entrevistas eram totalmente escassos. Conversas vem mostrar outra faceta do autor. Pela quantidade de depoimentos percebe-se que ele é um escritor que está aberto à interlocução e, o mais interessante de tudo, que ele não fala somente da própria obra ou somente da literatura brasileira. Ele se propõe a discorrer sobre os mais variados assuntos e se mostra um autor que literariamente tem um posicionamento crítico.
Arruaça: Que tipo de aquisição a leitura do livro pode conferir ao leitor?
Thiago: Conversas procura enxergar as duas facetas de Graciliano: tanto o artista quanto o homem. Por mais que ele já tenha merecido uma biografia escrita, ela é falha, por deixar alguns aspectos de fora. Então, acho que o livro acaba cumprindo o papel de cobrir essas lacunas, não somente sobre o homem, mas também sobre a própria obra.
Entre as entrevistas, em sua maioria desconhecidas da crítica, há uma feita antes de ele escrever Memórias do Cárcere, na qual ele descreve o período em que ficou preso e conta que foi vizinho de cela da Olga Benário, tendo assistido, inclusive, à cena em que ela foi levada de lá para ser deportada para a Alemanha.
Arruaça: Lendo as entrevistas, percebemos que Graciliano era um homem muito duro com outros autores e consigo mesmo. Você concorda quando ele diz que “não há talento que resista à ignorância da língua”?
Thiago: Uma coisa que percebo como professor de gramática é que, se o domínio da norma culta correspondesse realmente à excelência da forma estética, os gramáticos seriam grandes literatos e isso não acontece. Quando se trata da ignorância da língua, Graciliano é totalmente conservador do ponto de vista linguístico, mas, por outro lado, ele dosava isso com várias inovações, fossem lexicais fossem sintáticas. Dizia-se que ele era um moderno clássico. O simples domínio dos meios não faz de você um artista, mais do que o domínio da norma culta da língua. O importante é dominar as possibilidades que a língua portuguesa oferece, algo que não se consegue estudando pura e simplesmente gramáticas ou dicionários.
Arruaça: Você participou da concepção da exposição em homenagem ao Graciliano montada no MIS? Como se deu esse processo?
Thiago: Eu e Ieda, organizadores de Conversas, somos os pesquisadores da exposição. Oferecemos à curadora Selma Caetano bases e elementos e, mais do que isso, entregamos para ela a pesquisa escrita. O que procuramos fazer foi retratar aquilo que está no livro. A ideia era também apresentar conversas em que o Graciliano fosse personagem de alguma história envolvendo grandes autores brasileiros, como Murilo Mendes, Rubem Braga, Jorge Amado e Rachel de Queiros, por exemplo.
Arruaça: Como uma exposição sobre literatura pode ser trabalhada em um Museu?
Thiago: Houve a ideia de, a partir dos textos, produzir vídeos que dialogassem com o livro e que tentassem reencontrar o Graciliano Ramos sujeito. Foi um grande desafio. Difícil pensar em como representar visualmente algum aspecto da vida dele ou do período histórico. Então, houve todo um trabalho de pesquisa etnográfica, de diferentes documentos e de passagens da vida dele que estão presentes nas entrevistas.
O gabinete exposto apresenta a mesa do Graciliano com as canetas-tinteiro, com uma porcelana japonesa que ele usava para tomar café, o cinzeiro. Há também um copo que é bem emblemático da história dele, pois aparece em seu livro memorialístico, Infância. Ao recompor esse ambiente com objetos do autor, você humaniza, vivifica aquele escritor e então consegue ver o autor por outro prisma, para além do texto.
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