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Edição nº 4 – Janeiro de 2016

 

 

Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e autor de artigos, ensaios e poemas, Antonio Manoel dos Santos Silva analisa o tema da subjetividade contemporânea e questões sobre arte, mercado e crise.

 

ARRUAÇA – O senhor concorda com a ideia de que a palavra “estética” se tornou envelhecida? O indivíduo moderno seria mesmo esse sujeito que encara a arte como entretenimento?
Antonio Manoel – A estética não se tornou envelhecida para o indivíduo moderno. Já estava envelhecida praticamente no fim do século XIX. Na realidade, no mundo contemporâneo houve uma ressurreição do conceito de estética que começa discutindo que o problema é a sua definição. Alguns filósofos não aceitam que a estética faça parte da filosofia e essa complexidade nasce com os indivíduos que se propõem a refletir sobre a arte. É preciso especificar que se trata do sujeito massificado e não de todo indivíduo. Às vezes eles nem percebem que um tipo de entretenimento é arte. Nem que está trazendo uma força que potencializa a fantasia. Eles têm consciência massificada e não subjetivada, individualizada.

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Foto: Giovanna Betine

 

O olhar atento e a percepção da arte foram contaminados pela cultura do espetáculo?
Isso é algo típico da indústria cultural: transformar todos os objetos de cultura em fenômeno de espetáculo, como por exemplo o que acontece em algumas exposições que chamam atenção não para a qualidade da criação artística, mas para os aspectos externos da recepção. Assim como nas obras cinematográficas em que a percepção é contaminada pela cultura do espetáculo – considerando espetáculo como instrumento de lucro, daí os blockbusters. E nas peças de teatro, aquelas que se valem dos atores de televisão como sendo os protagonistas das peças, mesmo que essas obras sejam criadas por autores de grande categoria estética, como William Shakespeare, Arthur Miller, Samuel Beckett ou Luigi Pirandello. Percebe-se que algumas peças de teatro mais consistentes em termos de arte não ficam muito tempo em cartaz e só voltam numa época em que haja possibilidade de o público perceber seu caráter artístico. Isso é evidente ao reparar de que forma as pessoas discutem o espetáculo, a substância da arte se perde em considerações de superfície.

 

Na sociedade do espetáculo os indivíduos se isolam e se separam cada vez mais. Ao mesmo tempo, são bombardeados por ruídos de dispositivos tecnológicos que não desligam nem no momento do sono. É possível dizer, então, que a época contemporânea é marcada pela desintegração da subjetividade?
A desintegração da subjetividade é uma realidade que se pode comprovar. Mas acho arriscado dizer que os indivíduos se isolam e se separam cada vez mais. Não concordo. Essa afirmação carrega um preconceito em relação ao desenvolvimento tecnológico. Muita gente vê a tecnologia como se não fosse uma criação do ser humano. Muitos indivíduos que utilizam os dispositivos e as redes sociais não os usam para se isolar, mas para se comunicar. Tal comunicação pode ser maior ou menor, mas existe. Evidentemente as mídias sociais possibilitam uma tentativa de afirmação da subjetividade, que é enganosa. Por exemplo, muitas vezes o uso do Facebook não é para comunicação interpessoal, mas para deixar em evidência a subjetividade. Não é para um diálogo construtivo nem mesmo exposição dialógica, mas comunicação. A maior parte também é uma exposição da foto, do lugar onde se está. É uma comunicação? Sim. Entretanto não no sentido de troca de experiências substantivas, somente de superfície. A tecnologia não existe para tornar objetos os seres humanos. Existe para comunicação, que dificilmente é plena. Mas é uma forma de relacionamento humano. Mesmo as pessoas isoladas em seus celulares estão se comunicando com outras. E há outra questão: essa pessoa não impede que você a observe.

 

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Foto: Giovanna Betine

A atenção que se dá à percepção de uma obra de arte é questão fundamental para a análise da subjetividade?

Sim. As percepções diante de uma mesma obra são distintas. Isso ocorre porque ao passar da percepção à análise o indivíduo está subjetivando. Alguns professores e críticos acham que a percepção deles é a única possível, sendo que a arte é algo aberto para a construção de sentidos percebidos por diferentes pessoas. Diante de um quadro de Pablo Picasso há várias leituras. Mesmo que se diga que Guernica mostra o esfacelamento de uma cidade pelas bombas nazistas eu entendo que não é só isso. Existe todo o processo de elaboração e reelaboração, em primeira instância, feito pelas mãos do artista e depois por quem aprecia a obra. Há pessoas que não percebem a presença popular do circo no quadro. E quando se descobre muita gente fica surpresa. A subjetivação é uma construção individual que se faz pela formação. Alguns indivíduos tiveram acesso a informações formadoras, de abertura do espírito, e não somente objetivas. Toda arte tem um princípio que é o único que se preserva ainda no domínio humano: é um exercício de liberdade criadora.

 

O sujeito moderno deve ser produtivo, controlável e previsível a fim de atender às exigências do capital. A mecanização do ser humano atravessa a apreciação da obra artística e domestica o olhar? O comportamento de um indivíduo frente a um quadro, um filme, um livro é ativo ou reativo?
Existem as exigências do capital que são escancaradas, escandalosas e, às vezes, escondidas. A exigência para que o indivíduo moderno seja produtivo repercute até nas instituições que avaliam a produção intelectual e artística. Um exemplo atual no Brasil é a Capes. Como a Capes avalia os cursos de pós-graduação? É pela qualidade dos docentes ou pela quantidade de produção de pesquisadores que trabalham naquele curso? Uma avaliação quantitativa, que é tipicamente capitalista. Sobre a domesticação do olhar, se o ser humano aceita essa mecanização o olhar vai estar domesticado e, portanto, a apreciação da obra artística será degradada. Mas é possível notar que dependendo do processo criador pelo qual passa o ser humano há um momento em que ele começa a resistir à mecanização. E quem proporciona essa resistência é a própria apreciação da obra de arte.

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Foto: Giovanna Betine

 

Pensadores como Henri Bergson, por exemplo, discutiram que qualquer sensação é uma associação de “memória”, “desejo”, “vontade”, “expectativa” e “experiência imediata”. Diante disso, quais os critérios estéticos para a avaliação do objeto artístico?
Eles são três. A representação da verdade, a expressão da sensibilidade e da experiência. As Estéticas da Imitação valorizam a obra de arte pelo seu grau de expressão da verdade, portanto, a obra de arte em que predomina o intelecto sobre os dois outros critérios. As Estéticas da Criação valorizam a obra de arte pelo seu grau de expressão da sensibilidade e as Estéticas da Construção valorizam a obra de arte que concilia, na experiência do fazer artístico, a representação da verdade com a expressão da sensibilidade. A melhor obra de arte é aquela em que há o equilíbrio entre os três. Um exemplo moderno é Grande Sertão Veredas. Este livro é construído em torno de dois eixos: o amor não imediatamente perceptível e o pacto demoníaco. O texto é carregado de sentimento simples e ao mesmo tempo complexo que é o amor. Quer dizer, um sujeito ama outro, mas é reprimido em virtude da convenção que diz que se o outro também é homem não se pode amar. Porém a narrativa dá sinais de que esse outro é uma mulher. O da expressão da verdade é evidente porque há a discussão metafísico-religiosa: existe ou não o mal? Existe ou não o pacto? E a construção, que é maravilhosa. É possível cortar o texto ao meio, pois ele tem um andamento caótico até o meio e um andamento linear até o fim. É exatamente nesse meio que se coloca o problema da verdade religiosa. Por outro lado, quem está escrevendo e quem está narrando? Quem está narrando é Riobaldo, mas não é ele quem escreve. Quem escreve é quem ouve. Quem é que está ouvindo? Eu estou ouvindo, porque estou lendo. Mas alguém ouviu para escrever!

 

É possível afirmar que a arte moderna valoriza o choque da novidade ou toda arte é um ato de rememoração?
É o mercado da arte moderna que valoriza o choque da novidade. Boa parte da arte produzida é uma nostalgia, uma recuperação. No cinema recentemente vimos o filme A invenção de Hugo Cabret, dirigido por Martin Scorsese, que é a recuperação da história de George Meliés e do início do cinema. Outro exemplo é o filme Sonhos, de Akira Kurosawa. No quinto episódio o personagem entra no quadro de Van Gogh e a trilha sonora é de Chopin. Geralmente quando o artista está preocupado com o inédito é ruim, repetitivo. Faz coisas em série para vender muito.

 

Podemos dizer que a arte moderna está em crise?
Toda arte autêntica está em crise. Sempre esteve. Não existe artista que se acomoda. Talvez a crise atual seja diferente, imposta pelas exigências do mercado. Quem é que dá valor ao quadro? Esse é o problema posto pelo capitalismo: valer-se das obras de arte como objeto de lucro e os modos de divulgação. Depender de propaganda, leilões. Quer coisa mais ridícula que leilão de quadros? É o fetiche do dinheiro. Não é uma crise da arte enquanto valor em si, mas quanto ao valor monetário. Isso é uma contaminação da arte pelo mercado. A melhor obra que explicita os problemas da arte e as crises do criador é o filme F for Fake, de Orson Welles.