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Edição nº 1 – 2014

Mari cortava as cenouras para o suflê que serviria no jantar. Cebola, manteiga, farinha, leite e ovos. Gema no creme e a clara em neve no fim, antes de ir ao forno. – Mari, tem certeza de que não vai murchar? – Dona Lúcia, o segredo é o creme não ficar ralo. Pode deixar que seu pai vai lamber os beiços. Mari sabe tudo sobre culinária. Papai sabe tudo sobre tudo e, quando não sabe, inventa. Há tantos parênteses em sua fala que nunca consegue chegar ao final de uma história ou foge do foco do assunto. É o homem mais culto que conheço, mas se perde em sua sabedoria. Eu precisava de uma boa história sobre conflitos familiares, de preferência uma tragédia grega, para escrever um artigo do curso de jornalismo em que me aventurei depois de vinte anos de advocacia. Meu incansável pai seria a pessoa ideal para ampliar a minha cultura perdida nos livros de direito. Estudei muitos anos para ser juíza, não podia ver um livro jurídico que me debruçava sobre ele. Uma mistura de prazer e obrigação, meta e exaustão. Quanto mais eu estudava, menos eu sabia. Meu pai não ousava conversar comigo sobre assuntos jurídicos, pois eu sabia exatamente quando ele estava fabulando. Preferia acreditar em suas invenções ao flagrá-lo em estelionatos do saber. Meus pais eram desquitados. Nos dias das visitas paternas, eu e meus irmãos combinávamos quem seria o primeiro a levantar da mesa… ficar conversando com o papai era um suplício para um adolescente. Cultura demais para interesse de menos. Hoje, aos quarenta anos, tenho um grande prazer em ouvi-lo. Ele não mudou, eu mudei. Tenho sede de cultura, a cultura dos homens cultos. Não é a minha, a do direito. Não é a da Mari, a da cozinha. É a do meu pai, a de tudo. Mas o que seria do homem culto sem uma boa refeição e bom advogado? Enquanto aguardava meu pai para o jantar, abri um vinho e terminei de ler um artigo jurídico sobre traição entre casais. Papai certamente não conhecia esse tema, tampouco, as novidades jurídicas do novo código civil no âmbito da família. Seria uma boa pauta para uma revista cultural se eu fizesse um paralelo com conflitos familiares históricos. Seria? A campainha tocou. Fechei o livro. O suflê foi ao forno. Papai chegou faminto e curioso pelo cardápio. Foi direto para a cozinha abrir as panelas, como de costume. Mari o alertou: – Senhor, por favor, não abra o forno para o suflê poder crescer. Pela primeira vez vi papai aceitando o sermão, sem retrucar. Percebi que, sobre suflê, ele nada sabe. Um beijo em cada olho, vinho nas taças e papai perguntou sobre o que eu estava lendo. Ele tinha uma obsessão por leitura, mas quando viu que era sobre direito de família, nem ousou começar seu discurso. Aquela praia era minha e eu o convidei para mergulhar. – Pai, precisamos conversar sobre conflitos familiares e tragédias gregas para um trabalho do curso de jornalismo. – Hummm. Gostei. – Estou lendo sobre traição e culpa pelo divórcio, um tema novo no direito. – Medéia! – O que? – “É verdade que em muitas coisas sou diferente da maioria dos mortais. Para mim, quem, sendo injusto, é hábil no dizer, merece muito maior castigo.” – Alôô! Paiê… – Adoro esse trecho da peça, quando Medéia ameaça Jasão pela traição ao casar-se com a filha do rei Creonte. Até este tinha medo de sua vingança e, por isso, a expulsa da cidade. Minha filha, Eurípedes é um dos mais famosos poetas trágicos gregos. É uma peça que conta um dos momentos mais dramáticos vividos por uma das personagens mitológicas mais terríveis, cruéis e fascinantes do imaginário grego. Foi escrita no ano de 432 antes de Cristo, mas ainda hoje faz parte dos noticiários do mundo todo, provando mais uma vez que a vida imita a arte… – Espera, pai! Mas o que de interessante eu poderia escrever para um artigo de jornalismo cultural conectado o meu conhecimento jurídico? – Traição é cultura! Cultura de todos os povos! Desde a antiguidade! O que seria da arte se não houvesse a traição? Pobre Machado de Assis… sem falar nas músicas, no cinema, na novela, na pintura, literatura… Os poetas traíam suas esposas atrás de inspiração. Nunca conheci um poeta fiel. Escrever requer coração aquecido… Lembra do Ernesto que você defendeu? E o Costa, o Pereirinha… todos são poetas que precisaram de uma boa defesa no tribunal contra suas esposas! – Pai, volta ao foco. Acabei de ler que a traição hoje é um tema sem sentido para o direito. Não tem qualquer relevância num processo judicial. Antigamente, as pessoas contratavam detetives para flagrar o marido ou a esposa com um amante. Hoje não… E se eu abordasse o tema sobre essa mudança comportamental e a influência da mídia. As novelas banalizam a infidelidade como se fosse algo comum entre os casais. – Mas é! – Não é, pai! – Deveria ser. – Discordo. – A traição existe desde a Grécia antiga. Medéia foi traída por Jasão e matou a segunda mulher, o pai dela e seus próprios filhos! – Ela matou os próprios filhos? – Sim, para se vingar do marido. – Pai, mas isso é super atual! Talvez a traição seja um tema batido. Hoje, existem diversas mães e madrastas matando seus filhos e enteados. Olha o caso do Bernardo Boldrini, da Isabela Nardoni… Pai, você é um gênio! Vou escrever sobre isso… Puro jornalismo! Papai ficou orgulhoso de si e continuou a falar enquanto Mari servia o jantar. O suflê estava inflado, papai também. Serviu-se apenas do acompanhamento, como se precisasse sentir o sabor daquele prato tão esperado. Fechou os olhos e suspirou. Percebeu que Mari o olhava com satisfação. Papai perguntou a receita do suflê. Mari começou a ensinar. Servi mais vinho enquanto a cozinheira lecionava para o mais culto dos homens que conheço. A cultura dela, a minha e a de meu pai. O que seria dos cultos sem os incultos? Quem são eles?  

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