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“Como homenagear as vítimas da ditadura?” | Crédito: Laura Uliana

No último dia 8 de maio, a Faculdade Cásper Líbero recebeu a 5ª Aula Magna de Referência Interprogramas, do Fórum dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação do Estado de São Paulo,  tendo como convidado especial  Mauricio Lissovsky, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As falas iniciais couberam ao coordenador de Pós-Graduação da FCL, Prof. Dimas Künsch, ao diretor da instituição, Prof. Carlos Costa, e ao Prof. Eugênio Trivinho, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP, em nome do Fórum.

Apresentando o tema da Aula Magna, Dimas Künsch repetiu a pergunta que já se fazia visível no telão do Teatro Cásper Líbero, “como homenagear as vítimas da ditadura?”, e expôs o paradoxo brasileiro: em 2014, o país sediou a Copa do Mundo de Futebol, mas também viu serem completados os 50 anos do golpe militar que, em 1964, derrubou o então presidente João Goulart e instaurou a ditadura militar no Brasil e que, durante 21 anos, perseguiu, prendeu, torturou e exilou seus opositores políticos. Os estádios para a competição esportiva ficaram prontos. Os museus que homenageariam as vítimas desse regime de triste lembrança, não.

Professor Carlos Costa, Diretor da Faculdade | Crédito: Laura Uliana

Professor Carlos Costa, Diretor da Faculdade | Crédito: Laura Uliana

Künsch apresentou então o conferencista da Aula Magna, Maurício Lissovsky. Historiador e roteirista formado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre e doutor em Comunicação pela UFRJ, onde leciona Roteiro e Teoria da Imagem, Maurício é pós-doutor pelo Birkbeck College da Universidade de Londres.

Pesquisador da área de História e Teoria da Fotografia, é o atual coordenador da área de Ciências Sociais Aplicadas I junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), área dentro da qual estão compreendidas as Ciências da Comunicação.

Abrindo a discussão, Lissovsky reforçou a particularidade da ditadura brasileira. Ao contrário de outros regimes, o que foi instaurado no país se esforçou ao máximo em preservar  a aparência democrática, com a manutenção de instituições republicanas e o revezamento dos generais que exerciam o poder, sendo estes eleitos indiretamente por um Congresso bipartidário, constituído inclusive por uma oposição, ainda que enfraquecida e sem possibilidade de fazer um afrontamento real. Outros dois pontos foram a demora, de cerca de quatro anos, para que o governo militar assumisse sua face repressiva, consolidada com o decreto do Ato Institucional Nº 5, em 1968, e a promulgação, em 1979, da Lei da Anistia, que eliminava qualquer possibilidade de julgamento criminal, tanto de opositores quanto dos agentes da repressão. Falando sobre as políticas relacionadas à memória, o convidado colocou o foco na garantia dos novos direitos previstos pela Constituição de 1988 como um dos fatores que ocasionaram a sublimação das questões relativas à memória do período que ali se encerrava, não constando nem nos programas dos partidos e presidentes da república que foram originários da antiga oposição à ditadura e puderam governar o país após seu encerramento.

Lissovsky explicou, de início, que sua palestra seria constituída por cinco casos, dentre vários que integram uma ampla pesquisa que realizou sobre o tema. O primeiro é aquele que denomina “memorial da liberdade”, a ideia de que o regime militar foi alguma espécie de interrupção de um processo que se constituía no país. Documentários como os produzidos por Silvio Tendler e “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, ao usar de imagens de arquivo dos presidentes civis anteriores ao golpe, reforçam a ideia que a história republicana do Brasil foi interrompida em 1964 e retomada após a redemocratização. O professor apresentou também o projeto do Memorial Presidente João Goulart, um dos últimos de Oscar Niemeyer, cujos aspectos arquitetônicos apresentam elementos que remetem a essa definição de memória, de retomada após interrupção, estabelecida nos momentos de transição para democracia. Previsto para ser inaugurado em 2014, o Memorial não tinha começado a ser construído até maio de 2015.

Maurício Lissovsky apresenta imagens sobre a ditadura | Crédito: Laura Uliana

Maurício Lissovsky apresenta imagens sobre a ditadura | Crédito: Laura Uliana

O segundo caso é chamado por Lissovsky “o arco da maldade”, nome homônimo a um outro projeto de Niemeyer, este encomendado ainda em 1986 pelo movimento Tortura Nunca Mais. Tal representação já se referia agora ao efeito desse regime não apenas na república como instituição, mas na vida de indivíduos, como se percebia com a volta de políticos cassados em 1964, casos de Leonel Brizola e Miguel Arraes, ao poder com a redemocratização. O projeto, sob alegada falta de recursos, nunca foi realizado. O professor aponta a contradição, que, enquanto se previa um arco extenso para representar o alongamento do regime, este acaba por fragilizar e diminuir a importância das vítimas em si, razão inicial de existência do monumento. E apresenta algo surpreendente: em 2012, a marca All Star comprou os direitos sobre o projeto, produzindo um tênis que, supostamente, representaria as linhas do monumento Arco da Maldade e, ainda, conteria em seu interior um outro desenho do arquiteto, este homenageando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ao que Lissovsky se pergunta: “Como o projeto mais eloquente de monumento sobre o período se transforma em um tênis esportivo?”. “Não ter mais tortura se transforma em um caminhar confortável, o sangue das vítimas ter coagulado em um cadarço vermelho?“.

Ainda sob este caso, crava como um mascaramento de arte do fetiche consumista, mas apresenta a metáfora com a dualidade entre o golpe e o pacto: “Um pé do sapato dá um passo à frente e propõe: ‘Eu sei que houve tortura no Brasil, mas é importante seguir em frente’. E o outro sapato, que já está começando a fazer o passo seguinte, resume: ‘Eu sei que ainda há tortura no Brasil, mas foi importante seguir em frente’. Então a memória serve para articular a contemporaneidade e o que se passa hoje serve para justificar essa memória”.

Encerrada a apresentação dessa analogia, a palestra seguiu para o terceiro caso, que o professor cataloga em seus estudos como “pau de arara”. E explica: “Mesmo que não seja talvez a mais comum, o pau de arara se tornou a mais famosa representação da tortura no Brasil”. O primeiro monumento construído em homenagem às vítimas da ditadura no Brasil foi inaugurado em 1993 em Recife pelo governo do Estado de Pernambuco. A ironia, afirma, está no fato de a escultura ter sido construída numa das maiores cidades do Nordeste, onde a expressão “pau de arara” tem duplo sentido, também significando o transporte que trazia, nas mais precárias e degradantes condições, migrantes fugidos da seca para grandes cidades em busca de outra oportunidade de vida. Citando o relatório conclusivo da Comissão Nacional da Verdade, Lissovsky ressalta um item desse documento, as violações dos direitos humanos de indígenas e camponeses, para colocar que, distante do imaginário e da vivência da classe média e dos centros urbanos, a violência da tortura também se estendia aos indígenas, inclusive com materiais audiovisuais encontrados que mostravam a “formatura”, em 1970, da “primeira turma da guarda rural indígena”.

A imagem de um período, que foi sendo construída através das fotografias, opõe a classe militar repressora contra a resistência, configurada nos estudantes e apoiada pela classe artística, e acabou por ser consolidada, em grande parte, através dos livros didáticos. Em sua exposição, Lissovsky exemplifica o acontecido com o retrato da frase “Abaixo a Ditadura” sendo pichada em uma universidade e depois com a reprodução, estilizada, desse relato na capa de um capítulo sobre o regime militar de um livro didático. Sobre as universidades, cita o caso de 2011, ocorrido na USP, onde uma cerca de obras de um monumento usava o termo “Revolução de 1964”. Quanto às nomenclaturas, o professor explica que “revolução” é um termo utilizado pelos defensores do acontecido de 30 de março de 1964, ao qual se atribuem aspectos heroicos, enquanto “golpe” passa a ideia oposta, da ilegalidade e da agressão ao estado de direito para o mesmo acontecimento. “Ditadura militar” começou a ser utilizado para se referir aos governos que duraram do “golpe” até a redemocratização em 1985, enquanto “regime militar” é um termo cunhado já no fim do período, quando era necessário dar um nome para o que estava acabando que transmitisse a ideia de transição, e não de ruptura, trazida por “ditadura”. Ao final, acabou sendo parcialmente incorporado como termo técnico para a referência.

Maurício Lissovsky | Crédito: Laura Uliana

Maurício Lissovsky | Crédito: Laura Uliana

Encerrando essa quarta referência, o Prof.  Mauricio Lissovsky seguiu para o quinto e último caso que apresentaria aos presentes no Teatro Cásper Líbero: o do “corpo da Dilma”. O AI-5 permitiu ao governo não apresentar os seus presos políticos em tribunal, mas em alguns casos ao longo do período isso ocorreu. O mais famoso é o da hoje presidente da República Dilma Rousseff, cuja imagem depondo em um tribunal militar na década de 70, com juízes de rostos cobertos, se tornou parte do imaginário do período. A fotografia, que expõe uma tensão latente entre a então prisioneira Dilma e seus julgadores, ao se tornar amplamente divulgada em 2011, reforçou como nunca antes a pressão sob Dilma pela instalação de uma Comissão Nacional da Verdade, de uma forma que o ex-presidente Lula, pessoalmente não atingido em igual intensidade pela repressão, não enfrentaria. Ao destrinchar como o corpo da hoje presidente fala e representa uma personificação dessa violência, Lissovsky emocionou e ofereceu aos presentes uma visão única do acontecido, coroando uma fala que propôs uma reflexão importante a todos os que estiveram presentes.

Após duas rodadas de perguntas, da qual participaram alunos e docentes de diversas instituições, o professor Eugênio Trivinho, em uma última fala antes do encerramento da Aula Magna, fez uma colocação que, de certa forma, responde à pergunta do encontro, sobre “como homenagear as vítimas da ditadura”. “É preciso que o Estado brasileiro, presidido por uma ex-militante, cumpra integralmente o previsto no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, doa a quem doer, corrigindo o mais rapidamente danos e reconhecendo direitos das vítimas e de seus familiares. Seria devolver a eles a homenagem devida ao tamanho da luta no lastro do Estado de Direito”. Trivinho afirma que eventos como esse são, também, uma forma de homenagem àqueles que lutaram para que hoje o tema possa ser livremente debatido. Com a palavra, o professor Dimas Künsch fez o agradecimento final aos presentes e encerrou, sob aplausos, a 5ª Aula Magna de Referência Interprogramas, do Fórum dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação do Estado de São Paulo, que somam, hoje, 14 Programas, dos 45 existentes no Brasil.