Num café na esquina da avenida Paulista com a alameda Joaquim Eugênio de Lima, Alexandre Dal Farra tentava abrir uma garrafa d’água com os dentes. “Com um filho de seis meses você nunca tem as duas mãos livres”, brinca.
A cabeleira castanha desgrenhada e a farta barba quase escondiam os olhos verdes que, por trás dos óculos, ora observavam o frenético movimento dos carros, ora focavam, reflexivos, em pontos além do horizonte.
Formado em Música pela Faculdade Santa Marcelina e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Dal Farra deixou, há cerca de oito anos, o baixo e o trabalho de diretor musical para escrever as peças do Tablado de Arruar, grupo formado em 2001 com o objetivo inicial de trabalhar com teatro de rua. “Quando eu escrevi um texto e uma atriz o leu na rua, no mesmo dia, e uma galera se juntou para ouvi-lo, achei incrível. Muito mais comunicativo, muito mais possível. Descobri que sou melhor escritor do que músico. Eu sabia que tinha alguma coisa para dizer, mas eu estava num lugar meio errado”, relembra.
Aos 32 anos, Dal Farra pertence à geração de novos dramaturgos paulistanos cujos textos têm se destacado na cena teatral da cidade. Em 2012, partindo de referências a Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville, e Crime e castigo, de Dostoiévski, Dal Fara criou a trama de Mateus, 10, sua sexta peça, que, com mais de 45 apresentações em três temporadas, lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Autor 2012. Num pequeno espaço com poucos elementos cênicos, se desenrola a crise do pastor Otávio. Obcecado pelo texto bíblico Mateus, 10, Otávio passa a pregar uma nova doutrina e leva sua obsessão a níveis extremos, levantando questões como a culpa, a alienação e a fé.
Autor, eu? Como?
Pode soar estranho para ouvidos menos acostumados ao teatro, mas Nelson Rodrigues (1912-1980) e Plínio Marcos (1935-1999) não foram os únicos – tampouco os últimos – a escreverem para teatro no Brasil. Entretanto, nos últimos anos o “dramaturgo de gabinete” praticamente não encontra um lugar de expressão. A maioria dos projetos estava focada no trabalho de diretores, companhias e grupos, e na captação de verba por meio de leis de fomento e editais públicos.
Além do predomínio do teatro coletivo, outros fatores foram responsáveis por obscurecer um pouco o típico autor de teatro. Entre eles, está a ausência de bons cursos de dramaturgia. Na capital paulista, porém, a mudança começou a ocorrer há cerca de seis anos com a criação do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council, em 2007; da SP Escola de Teatro, em 2009; do curso de dramaturgia do grupo Os Satyros, também em 2009; e do O Club Noir, no ano seguinte, com aulas ministradas pelo dramaturgo e diretor Roberto Alvim.
Diversidade e desafio
Para o dramaturgo Gustavo Colombini, 23 anos, a criação de escolas de dramaturgia é uma forma de revalorização do texto dramático. Porém, pondera que todo autor teatral deve levar em conta suas experiências e sua formação pessoal. “Uma espécie de faça você mesmo”, diz. “De qualquer forma, acho que esse olhar para a dramaturgia é inédito. Estamos formando muitos dramaturgos e as pessoas estão se interessando por nós.”
Integrante da terceira turma do Sesi-British Council, Colombini teve seu texto O Silêncio Depois da Chuva escolhido entre as peças de outros doze jovens autores para ser montado, em 2011, pelo diretor e também dramaturgo Leonardo Moreira, da cia. hiato. Por meio de fragmentos, o espetáculo coloca em cena o drama de uma família cujo pai está escondido num porão. “Parti dos registros da minha própria família e de elementos ncontrados na dramaturgia de Michel Vinaver [dramaturgo francês]. É um drama que não se apresenta em sua completude. Ele está esburacado e cabe ao público completar as lacunas que se formaram”, diz, antes de reparar no frio e tornar a encher os copos de cerveja. “Está ventando gelado, hein?”
Mesmo entendendo que as escolas de dramaturgia desempenham um papel importante no surgimento de novos dramaturgos, Rudinei Borges, 30 anos, acredita que o teatro é a melhor escola. “As escolas acabam por criar características estéticas muito parecidas. A dramaturgia precisa ser tomada de diversidade, de desafio e de ousadia. O dramaturgo tem que ler outros dramaturgos, mesmo que ele os imite no começo, para buscar sua própria voz. É preciso estabelecer uma relação profunda com o teatro”, opina. Nascido em Itaituba, interior do Pará, Borges construiu sua relação com o teatro a partir da vivência com o coletivo, com o rústico e com a literatura – ele também é poeta. “Aquela coisa de tecido de algodão, de criança vestida de anjo com asa de isopor e peninha”, ilustra.
Em 2013, aliando cultura popular e imaginário, nasceu a peça Dentro é Lugar Longe, escrita a partir da história oral dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima, que durante um ano desenvolveu uma pesquisa em torno do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho”. A encenação, ocorrida num ônibus em movimento pelo centro de São Paulo, surgiu como forma de potencializar a ideia de partida, que, ao mesmo tempo, é chegada. Agora, Borges se dedica a Agruras – Ensaio sobre o Desamparo, espetáculo do Núcleo Macabéia, que ficou em cartaz no Teatro Heleny Guariba, na Praça Roosevelt.
Apesar de a cena teatral paulistana se mostrar pulsante, com jovens autores dispostos a experimentar diferentes linguagens e elementos dramáticos diversos, ela ainda enfrenta um problema de formação de público e de captação de recursos, dois velhos conhecidos da história do teatro brasileiro.
Alexandre Dal Farra acredita que o Programa de Fomento ao Teatro – estabelecido em 2002 pela Lei 13.279, com o objetivo de apoiar a criação de projetos continuados de pesquisa e produção de grupos teatrais –, poderá criar possibilidades reais de elaboração de espetáculos. “Não acho uma lei restrita. Acho que é o que de mais democrático dá para ter. E a democracia tem limites. Agora, acho ruim que ela exija a formação de um grupo, porque engessa os projetos. Às vezes, um projeto de continuidade é de uma pessoa e não de uma companhia”, reflete.
Com relação à dificuldade de formação de plateia, uma pesquisa Datafolha divulgada em julho de 2013 mostrou que, embora o teatro receba públicos de diferentes faixas etárias, quem mais o frequenta, em São Paulo, têm entre 16 e 40 anos de idade. O número de pessoas que não assiste a espetáculos teatrais na cidade é alto em todas as idades: 47% das pessoas entre 16 e 25 anos não vão ao teatro; e, entre 26 e 40 anos, 60% não frequentam.
Arte do momento
“Em 2002, havia o programa Formação de Público, mas, infelizmente, acabou. Fazemos peças incríveis, temos um fomento de 600 mil reais para trabalhar com a peça durante dois anos e fazer o que quiser no palco. Mas fazemos o que queremos mesmo. Porque ninguém está vendo. Você pode cagar na estátua do Lula, se for contra ele, pode metralhar o Sarney, no palco, e ninguém verá. Isso, para o teatro, é muito triste, porque ele é uma arte que ocorre no momento em que é feito”, observa Dal Farra, recentemente aclamado pelo livro Manual da Destruição, lançado no início de 2013.
Ele acredita ser necessário um esforço por parte do Estado para propor projetos que insiram o teatro na vida das pessoas: “Mateus, 10 ganhou o prêmio Shell, mas não ‘bombou’. A peça é difícil, trash. Um público de teatro não precisa ser culto, mas precisa ter experiência com teatro para aguentar a porrada e estar ali com certo sentido de pertencimento. Isso não se faz com Vale Cultura, mas com programas mais propositivos, como se apresentar em escolas e incentivar cursos de teatro. Nesse aspecto, sou conservador. Porque, querendo ou não, gostar de teatro tem relação com ter feito um pouco. É como futebol: ir ao jogo tem a ver com ter jogado futebol na rua e entender as regras”, analisa.
“Tenho medo de achar que a classe teatral faz teatro para ela própria, porque isso seria horroroso e não teria um propósito”, Colombini contrapõe. Ele enxerga que há uma clara divisão entre teatro independente e teatro comercial. “O musical A Madrinha Embriagada, por exemplo, custou cerca de 12 milhões e está sempre lotado. O mesmo acontece com os espetáculos musicais do Teatro Bradesco. Existe, realmente, um problema de formação de público, mas para um outro teatro”, argumenta.
Para a dramaturga Michelle Ferreira, 31 anos, autora das peças Tem Alguém Que Nos Odeia e Os adultos Estão na Sala, ambas em cartaz no segundo semestre de 2013, a marginalização do teatro está relacionada, de certa forma, com o “umbiguismo” que o rodeia. “Não há nada pior do que um teatro ruim, que não se preocupa com o público, que faz egotrip em cena. A pessoa não volta mais, mesmo. O teatro merece um lugar popular, de democracia, no qual um maior número de pessoas consiga estabelecer um contato com o que está sendo apresentado. Cada um estabelece o contato que lhe é possível, com o repertório que tem”, afirma, entre um cigarro e outro, no camarim do Teatro Tusp momentos antes da penúltima apresentação da peça Os Adultos Estão na Sala, primeira montagem da Má Companhia Provoca. Em cena, três mulheres circulam por um apartamento e misturam suas neuroses pessoais às inquietações contemporâneas.
Indo além dos dois problemas clássicos enfrentados pelo meio teatral brasileiro, o dramaturgo Alexandre Dal Farra aponta outras questões, ou melhor, outras “patas do ornitorrinco”, que precisam ser “desatrofiadas”. “O teatro em São Paulo é como um ornitorrinco que tem uma pata gigante e carnuda que funciona muito bem, chamada produção. A criação é realmente algo incrível. Porém, as outras patas do ornitorrinco não existem: não há incentivo para a criação de público e não há fomento para divulgação no sentido de crítica teatral. Mal há espaço nas publicações. Ou seja, o teatro paulistano é um bicho gordo que se arrasta com uma pata só. É um bicho gordo, mas
bonito”, ri.
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