Cozinha de restaurante profissional é uma zona perturbadora para intrusos desajeitados. Há calores variáveis, objetos cortantes e uma confusão de ruídos (exaustores, coifas, frituras, cozimentos, grelhas, lavagens…). Os aromas se misturam em ondas, como sons na música. As pressões de tempo e espaço são inevitáveis e o silêncio é valioso.
“Concentração é tudo. Gritaria e caos em cozinha é coisa de cinema e TV. A gente tem de se entender pela sintonia um com o outro, como os músicos de uma orquestra”, diz Mara Salles, uma chef que trinta anos atrás nem sabia cozinhar direito e hoje é uma das principais embaixadoras da gastronomia brasileira, pesquisando concepções e repaginando tradições.
Ao longo de três horas de nossa fragmentária conversa em pleno rush, os membros de sua equipe não disseram mais que dez palavras cada um, se tanto. Alguns simplesmente não vocalizaram nada que me fosse audível. Pareciam ter perdido a conexão com o mundo exterior. “Cozinha é marcha, andamento, constância.”
As cozinhas se dividem em praças, que, classicamente, levam nomes franceses, como rotisserie (assados e grelhados) e garde manger (comidas frias, principalmente saladas). No momento em que entrei naquele centro de emanações, o Gabriel preparava saladas de folhas miúdas com gomos de laranja bahia e molho de taperebá.
Essa parte da cozinha, onde os pratos são finalizados, foi uma construção calculada nos mínimos detalhes (em maio, o Tordesilhas se mudou da rua Bela Cintra para cá, Alameda Tietê). Embora haja pouco espaço vago, os cozinheiros não batiam os cotovelos uns nos outros naquela noite de sexta-feira: “Domingo é que é puxado. Atendemos três vezes mais pedidos que a média semanal”.
Questão de motivação
Ao alcance de suas mãos, sob o passa-pratos, havia quatro farofas. Duas “farofas d’água”, ambas feitas de uma farinha grumosa, rústica e ácida, muito apreciada na região amazônica. Elas são adicionadas ao pato no tucupi ou às casquinhas de siri; a “farofa de alho” é para os pratos com carnes do sertão (jabá e carne de sol, e a “farofa de dendê”, para o bobó.
As panelas e cumbucas vêm de Goiabeiras, um bairro de Vitória (ES). Essas panelas de barro, ideais para moquecas (porque conservam a temperatura), são produzidas há séculos. No Dossiê das Paneleiras de Goiabeiras, do Iphan, o naturalista Saint-Hilaire descreveu-as assim: “caldeira de terracota, de orla muito baixa e fundo muito raso”.
Com seu aguçado senso de detalhe, Mara elevou a comida brasileira a um patamar superior. De tempos em tempos, ela vai aos brasis profundos para conhecer os saberes e fazeres intrínsecos das nossas gentes. “Fico sonhando em fazer comida brasileira como o Tom Jobim fazia música. Quá!”, ela escreveu em seu livro Ambiências – Histórias e Receitas do Brasil (editora DBA, 2011).
Não estava usando aquele chapéu típico de chef aquele dia, e sim uma espécie de lenço artesanal, tecido à mão, comprado numa de suas passagens por Goiás; e relógio, e brincos de argola, e óculos de lentes retangulares, e umas botas tão delicadas quanto macias. Garante que hoje em dia nada em seu restaurante depende exclusivamente dela.
“Numa cozinha, a hierarquia é uma questão de motivação, não de poder. Construí uma equipe ótima. Isso é a conquista das conquistas. Muitos restaurantes recebem altos investimentos, têm equipamentos de última geração, decoração refinadíssima, mas naufragam por falta de harmonia das equipes em todas as etapas de produção.”
Dentro da sua rotina, joga em todas as posições: escritório, preparo, finalização, passa-pratos, eventos externos, palestras, aulas… Um restaurante não vive somente de sua boa reputação, muito menos numa cidade como São Paulo, com tantas opções. Na era das celebridades (com ou sem uma obra relevante), até os restaurantes precisam de um rosto humano.
“Então, você tem que aparecer sem se desgastar. Até porque não sou marqueteira (aliás, nem gosto dessa palavra). Se eu tivesse total liberdade de escolha, só ficaria dentro da minha cozinha e, de vez em quando, criaria alguns almoços ou jantares em eventos específicos, fora daqui, desde que a experiência pudesse me ensinar algo novo também.”
Dias antes do nosso primeiro encontro, ela havia participado do Savour Stratford Perth County Culinary, em Stratford, perto de Toronto; e depois esticou até Chicago para conhecer mercados e restaurantes, como o Avec. “Gosto de achar objetos e utensílios que, por incrível que pareça, você não encontra facilmente no Brasil, como essa minicolher – não é uma beleza? –, perfeita para pingar molho de pimenta.”
Na fazenda
A atividade de chef é contemplativa: “A transformação do açúcar em uma calda, por exemplo, é fascinante. Um espetáculo”. Falando em espetáculo, ela acha que não tem queda para apresentar programas de TV sobre comida. “Além de perigoso (te expõe demais), é chato, toma tempo e não te permite ser o que você é…”, diz, examinando minuciosamente uma cocada com calda de tamarindo.
Bobó, barreado, pirarucu, torresmos, queijo coalho, tacacá, espaguete de abobrinha, creme de pequi, suspiros de jatobá… O Tordesilhas tem várias amostras do Brasil. Enquanto o tempo não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão, como já disse Gilberto Gil. Mara não acredita que “uma pessoa nasce pra cozinha”, mas reverencia seu passado rural.
“Na fazenda, nunca me senti obrigada a cozinhar. Cozinhava porque a minha mãe cozinhava. Na cultura rural daquela época, filhos e filhas eram assistentes gerais. Com cinco, seis anos eu já negociava com a minha mãe a hora de brincar. Havia muito, muito trabalho em casa, e a gente tinha que ajudar não apenas na cozinha, mas em quase tudo.”
Nasceu em Penápolis (SP), a 500 quilômetros da capital. Sua mãe, Encarnação Simon Salles, 83 anos, conhecida como Dona Dega, deu à luz nove vezes (Mara é a segunda).Glaucia, uma das irmãs, é advogada, “mas cozinha divinamente”, segundo a Mara. “Meu pai [Adriano Salles] era muito exigente com comida. Foi assim até seus últimos dias de vida. E tinha uma cultura impressionante.”
A fazenda de 170 alqueires onde viveu a menina Mara ficava entre Penápolis e Promissão. “Tínhamos gado de leite e o porco era a principal carne (conservada na gordura!). Plantávamos café, arroz, feijão, hortaliças, amendoim e frutas, inclusive frutas silvestres. O feijão que comíamos era claro, denso, colhido ali mesmo, e secado no terreirão.”
Na época das colheitas, sr. Adriano contratava três ou quatro famílias de colonos, que ocupavam casas de tábuas dentro da propriedade, já reservadas para eles. “Casas de arquitetura cabocla clássica.” Quando os colonos voltavam para suas origens, Mara e a criançada ocupavam uma daquelas casas e nela brincavam de “casinha de verdade”.
“Tudo funcionava como na casa da gente e esse fazer de conta de verdade fazia toda a diferença”, ela escreveu em seu livro. “Era tanta criança que, em 1960, apenas as que estavam em idade de iniciação escolar somavam catorze. Meu pai, caboclo aguerrido, articulou com muito esforço a fundação de uma escolinha municipal exclusivamente pros filhos, sobrinhos e filhos de colonos.”
A carne de porco não era apenas uma tradição clássica na cozinha rural brasileira. Do porco aproveitava-se quase tudo: “Sabe que até hoje eu não sei fazer frango caipira sem usar banha? Na fazenda da infância, orelhas e pés eram salgados e engrossavam o feijão. “Em curto espaço de tempo, a carne de porco quase desapareceu dos cardápios e de boa parte das casas brasileiras”, lamenta.
Os ingredientes
Dona Dega, que está com Mara no negócio desde o início (1986), trabalha no Tordesilhas durante o dia, nos preparos. “Volto ao aconchego de minha mãe pra dizer que foi com ela que aprendi as sutilezas no trato com ingredientes simples como o almeirão, o maxixe, a cambuquira, a galinha e outras coisas da roça; sutilezas que venho aplicando amiúde em minha cozinha ao longo dos anos, onde passei a dividir com ela as bocas do fogão.”
Naquela época, na fazenda, os caldos resultantes do cozimento de legumes, carnes e aves eram reservados e, com eles, Dona Dega orquestrava várias receitas. “Se, ao fritar a bistequinha, ela ficasse seca, lá ia um tiquinho do caldo de legumes pra deixá-la brilhante; ou pra dar umidade ao mexidinho. A água em que o milho verde era cozido, nunca se jogava fora.”
“Dona Dega”, Mara escreveu, “nunca soube o que é mirepoix, nunca ouviu falar em fundos nem em sabor umami; e, se sua abobrinha fosse cortada em julienne, o sabor seria anosluz inferior àquela batidinha com uma faca tosca e sem uniformidade de corte”. Quanto ao sr. Adriano, ele foi lavrador, dono de terra, administrador de fazenda, comerciante de café e de produtos agrícolas.
A quebra da Bolsa de Nova York em 1929 gerou um efeito dominó na economia mundial. Mara estava com 18 anos quando o pai faliu. Na época, ele não era mais fazendeiro. Morava já com a família em Penápolis e negociava café em grão. “Migramos para a capital com uma mão na frente e a outra atrás. Mas adorei. Eu desejava muito morar em uma cidade grande.”
Na capital, sr. Adriano foi trabalhar no comércio, e Dona Dega preparava marmitas para engordar o orçamento da família. Mara, por sua vez, estudava Turismo no hoje chamado Centro Universitário Ibero- Americano (Unibero). No final dos anos 1980, ela e a mãe abriram o Roça Nova, um restaurante de comida caseira na rua Iperoig, no bairro das Perdizes.
Mara havida saído do emprego de secretária executiva no Banco Itaú. “Confesso que montei o Roça Nova confiando na experiência da minha mãe. Daí fui aprendendo com ela. Eu não teria conseguido bolar os cardápios atuais se eu não tivesse começado com a cozinha brasileira básica, na fazenda do meu pai, conhecendo desde os ciclos das plantações até as técnicas mais básicas.”
Carnes e sertões
Sempre nutriu um desejo antigo de ganhar chão e ir em busca dos brasis que ela ouviu dizer nas primeiras aulas de história e geografia no primário. “Todo o saber concebido dentro daquela escola rústica ganhava uma dimensão fabulosa: a escuridão do Rio Negro, o assovio do minuano, as histórias de Lampião, as tropas e os tapuias, as chalanas, as senzalas…”.
E, ao longo do tempo, suas viagens pelas profundezas do país resultaram em descobertas tão variadas quanto surpreendentes, como cocos e coquinhos de polpas amanteigadas, tucumã, pupunha, licuri, farinhas (secas, pubadas, gomadas, grumosas, finíssimas); pimentas frescas de todos os cheiros e matizes; e frutos como o cajuzinho do cerrado, a jurubeba e a guariroba.
A gente se encontrou no Tordesilhas noutra sexta, à luz do dia, logo depois que ela retornou de Goiânia, onde ajudara a organizar um festival de comidas regionais. Quando cheguei, ela fazia o que mais gosta: cortar/porcionar jabá. Mergulhada em sua própria (e espessa) gordura, essa carne rústica, “mas deliciosa”, remete aos tempos imemoriais do Brasil Colônia.
“Não pense que não sou vaidosa. Minha vaidade aparece quando vejo que meu trabalho está sendo reconhecido à altura do que estou fazendo”
E por falar em carnes e sertões, ela se recorda de uma de suas andanças. Ela e o marido Ivo Ribeiro, seu sócio no Tordesilhas, foram até Belo Jardim (PE) buscar conhecimentos sobre o plantio e o uso do milho na culinária festiva local. “Eles plantam o milho no São José [19/3] e colhem na véspera do São João, para a festa”, conta. “Os homens vão cedinho colher e as mulheres preparam. Esses intercâmbios sempre resultam, direta ou indiretamente, em alguma inspiração.”
“Nessas viagens, a Mara vai atrás das cozinheiras saber como um ingrediente ou tempero foi utilizado. Conversa de igual pra igual, seja com quem for. Não é de botar banca. E tem uma deferência toda especial pra deixar o outro à vontade pra revelar o que faz e como faz. Admiro sua disposição e simplicidade”, diz o mineiro Luiz Magalhães, professor de filosofia e amigo do casal.
Todo restaurante reputado se preocupa com os ciclo dos alimentos que emprega. Ciente disso, Mara criou o projeto “Tem Mas Tá Acabando”, que resgata e contextualiza ingredientes raros, de comercialização difícil e valiosos do ponto de vista gastronômico. “O mangarito, por exemplo, tem mas tá acabando. Então, numa das edições desse nosso festival, montei um cardápio usando esse insumo.”
E passamos a falar sobre o Programa Ação Família, da Fundação Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, onde ela é voluntária. “O que faço lá é ensinar (na verdade, ajudar as pessoas a serem criativas dentro do que elas pretendem). A gente precisa ser generoso: devolver à sociedade um pouco do conhecimento que conquistamos.”
Participou também de ações para a atual gestão da Prefeitura de São Paulo, em parceria com a Fundação Nestlé. Além de cinco workshops presenciais em escolas de regiões diversas da capital, ela protagonizou o primeiro de uma série de vídeos sobre merenda escolar. O “Comida de Escola” integra o Programa Nestlé Nutrir Crianças Saudáveis.
“A merenda do município é muito rica do ponto de vista dos insumos e do preparo. As merendeiras e nutricionistas das escolas sabem o que fazem, mas, de modo geral, elas não veem a alimentação como uma forma de educação. Então, uma das minhas preocupações foi tornar o refeitório um espaço de convívio, de entendimento da comida, que deve ser servida de maneira carinhosa, afetiva.”
Famas e vaidades
Mara, que já foi professora durante mais de uma década nos cursos de Gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, ainda encontra tempo para dar aulas algumas vezes por ano na tradicional (“e elitizada”) Escola Wilma Kövesi de Cozinha. “Quando entrei na Anhembi Morumbi [2000], eu era a única com formação e conhecimento em cozinha brasileira. E a cozinha brasileira ainda era considerada ‘menor’.”
No nosso segundo encontro, a Dona Dega, que tinha acabado de renovar os arranjos de flores naturais do salão do Tordesilhas, apareceu na cozinha. O caldinho de feijão (cerca de 15 litros por semana) e a feijoada dos sábados é responsabilidade desta vovó vigorosa e delicada. Apesar da boa saúde, o papel dela vem sendo reduzido. “Ela não é mais uma moça. E o trabalho em cozinha é pesado”, Mara comenta, protetora.
A maioria dos funcionários do Tordesilhas tem mais de dez anos de casa. O Preto (Wilton Francisco da Cruz), por exemplo, está com Mara desde o Roça Nova. No salão, todos se envolvem com degustações (de vinhos, de cachaças, etc). “Legal ver a ascensão da Mara – de uma coisa caseira para uma outra linguagem. Eu tinha 17 anos quando comecei. Minha vida particular se mistura com a do restaurante”, diz Preto.
E tem o Zé Lima, conhecedor de pimentas como poucos neste mundo. “Nenhum restaurante no Brasil tem um mestre pimenteiro”, Mara se orgulha, na presença dele. As pimentas do Zé Lima se harmonizam com a composição do cardápio do Tordesilhas. Dependendo do prato que o cliente escolher, ele recomenda um tipo específico de pimenta (ou umas das combinações com pimentas que ele cria).
“Se fama é medida pelo reconhecimento das pessoas, sou famosa, sim. Agora, não sou celebridade. Nem pretendo ser. Nem tenho vocação para isso. Ser igual é bem legal. Mas não pense que não sou vaidosa. Sou, sim. Minha vaidade aparece quando eu vejo que meu trabalho está sendo reconhecido à altura do que estou fazendo. Acho que todo chef adora receber elogios. Eu adoro.”
[mini cat=”artigos-casper” n=3 excerpt=”show” thumbs=”true”]
[mini cat=”editorial-casper” n=3 excerpt=”show” thumbs=”true”]
[mini cat=”revistas” n=3 excerpt=”show” thumbs=”true”]