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Edição nº 1 – 2014

A cidade de Santiago, no Chile, está entre os destinos mais visitados pelos turistas que viajam pela América do Sul. Mesmo assim, são poucos os que têm na ponta da língua os principais pontos da capital chilena. Não há um cartão postal propriamente dito, como seria o Cristo Redentor, no caso do Rio de Janeiro. Na verdade, muitos passam por Santiago como uma “obrigação” de viagem, já que é a maior cidade do Chile, e abriga o maior aeroporto. O ponto de parada dá a opção para a visita a outros locais, como a cidade de Valparaíso, lar do museu de Pablo Neruda, e a cidade de Viña del Mar, que atrai por suas belas praias.

Em janeiro, fui, com dois amigos, a Santiago, e como era de se esperar não sabíamos muito sobre a cidade. Nosso conhecimento estava limitado a jogadores de futebol, dois ou três políticos, e quatro ou cinco palavras em espanhol. Pelo lado positivo, era uma chance de conhecer o lugar sem roteiros preestabelecidos ou itinerários quadrados. Nossa única escolha era andar e ir descobrindo tudo. Obviamente, essas andanças nos consumiam bastante, e volta e meia tínhamos que arrumar um lugar para recarregar as baterias.

E foi andando pelo centro, no segundo dia de viagem, que decidimos parar em um café de esquina. Além do cansaço, o fato de não termos muito dinheiro ajudou na escolha do lugar, que parecia bem simples, apesar do nome, “Gran Café”. Entramos com aquele jeito de quem não foi convidado, e sentamos em três banquetas altas, em frente a um balcão estilo padaria, mas como a diferença de não ter a parte de baixo, o que nos possibilitava esticar as pernas.

Uma garçonete muito bonita passou pela gente sorrindo e disse “Hola chicos!”. Olhamos de volta e respondemos com um “portunhol” envergonhado, mas ela já estava do outro lado do balcão, perto de um senhor engravatado, bebendo um café e lendo um jornal, como em um clichê de padaria. O lugar era bem pequeno, e além de nós três e o senhor do lado oposto, duas mesas atrás estavam ocupadas. Uma por jovens que abocanhavam sanduíches enormes, sem dizer uma palavra; e a outra por quarentões de terno e gravata, que discutiam alto e rápido, assuntos indecifráveis.

Um garçom baixo, mulato e visivelmente forte, se aproximou do outro lado do balcão estendendo três menus e falando algo que nós concordamos em silêncio ser uma saudação como “sejam bem-vindos” ou “fiquem à vontade”. Ficamos ali tentando decifrar o cardápio, enquanto os alto-falantes tocam bem baixinho uma sequência de Bee Gees, cantada por uma artista que devia ser chilena, pelo sotaque.

O garçom voltou perguntando em português de onde nós éramos. “São Paulo”. “Prazer, Ariel. Sou da Bahia, mas fui embora aos 13. É a primeira vez de vocês aqui?”. Dissemos que sim, e ele foi para a cozinha, com nossos pedidos anotados em um papelzinho. Concordamos que as garçonetes eram realmente lindíssimas, e muito mais simpáticas que em outros lugares em que havíamos estado antes. O Ariel parecia o único homem que trabalhava ali, pelo menos em contato com os clientes. Além dele, mais três moças. A do “Hola chicos”, uma de cabelos longos e pretos, que usava um vestido acima do joelho e lavava os copos sorrindo e cantarolando “How deep is your love”, e uma de cabelos pintados de loiro, amarrados em um rabo de cavalo, e que usava um decote volumoso e discutia com os quarentões no mesmo tom de voz, como se fosse uma amiga do grupo.

Era um café bem comum na realidade. Decoração simples, portas abertas para a rua movimentada de uma quinta-feira à tarde, e nada que pudesse chamar nossa atenção para algo não usual. Olhamos para o senhor do jornal, que chamava a moça que lavava a louça. Ela se aproximou dele e trocou algumas palavras, até se despedir com um beijo rápido nos lábios. Nos entreolhamos para verificar se todos viram aquilo. “Cliente antigo. Elas não fazem isso com todo mundo, não”. O Ariel trazia uma bandeja com três Coca-Colas e três sanduíches.
Vendo nosso rosto de dúvida e perplexidade, ele voltou a explicar. A maioria recebia beijos no rosto, nada de mais. Os que recebiam beijos na boca eram clientes antigos, e era tudo na amizade. Nossas dúvidas só cresceram. “Como assim? Todo lugar é assim?”. Ariel nos olhou como se também não estivesse entendendo nada. “Não, só nos cafés, aqui é um ‘café con piernas’”. “Café com o quê?”. Olhamos para o garçom que nos encarava como se explicasse o alfabeto para um jovem de quinze anos.

“’Café con piernas’, é onde vocês estão, é cheio disso aqui em Santiago. Ninguém falou para vocês?”. Era óbvio que não tínhamos conhecimento sobre nada daquilo. O Ariel se aproximou e disse mais baixo. “É um café em que as garçonetes se vestem assim, com roupa mais curta, e recebem os clientes com beijos e simpatia”. Não entendemos direito. Ninguém havia nos recebido com beijos e, para nós, as roupas não eram absurdamente curtas. “Tem gente que vem aqui achando que é bordel, e que as meninas são prostitutas. Por isso, sempre tem que ficar de olho. Mas elas são espertas também, e na maioria das vezes não tem problema. O pessoal sabe como funciona”.

Era muita coisa nova. “Mas por que isso?”. E o Ariel: “Faz tempo que tem. Não sei direito. Quando cheguei aqui em Santiago já era tradição. O pessoal que trabalha aqui no centro sempre vem na hora do almoço ou no fim do expediente. Tomam um café, ganham um beijinho, e vão felizes para casa”. “Vêm mulher também?”. “Vêm menos, mas vêm também. É um café normal”. Era um café normal para nós, até o Ariel nos contar tudo aquilo.

A “Hola chicos” se aproximou. Ariel disse que nós éramos amigos do Brasil e ela sorriu com entusiasmo, fazendo um cafuné na cabeça de cada um e falando coisas que consideramos ser meigas, em espanhol. Logo que ela saiu de perto, Ariel se aproximou de novo. “E tem também o minuto feliz. Happy minute. A gente abaixa as portas por um minuto e as meninas fazem um showzinho aí.”. Estávamos começando a entender o lugar até esse comentário. “O quê?”. “É um minuto qualquer do dia. Na verdade nem é todo dia. Mas a gente abaixa a porta e as meninas começam a dançar. Depois a porta volta a subir, como se nada tivesse acontecido.”

Olhamos para as portas e para a rua, movimentada. “Eu toco esse sino aqui e começa o minuto feliz. Mas já vou avisando que hoje não vai ter”. E a pergunta veio: “Elas tiram a roupa?”. O Ariel fez que sim com a cabeça. “Mas não tem garota de programa aqui não. Pode até ter em outros, mas aqui não”. As perguntas borbulhavam em nossas cabeças, mas nada era falado. “Isso aqui é ponto turístico de Santiago, amigo, vem gente de todo lugar. E eu não conheço um chileno que não tenha estado em um ‘café con piernas’, é cultural o negócio”.

Pagamos a conta e voltamos para a nossa andança. Não tomamos café, nem ganhamos beijinhos. Deve ser cultural.
 

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